quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009

Noite de Domingo

O vinho que descia queimando minha garganta, os pratos sujos em cima do baú e o edredom macio que nos cobria- os três já denunciavam que a partir daquele dia eu fugiria de casa diversas vezes, que o teu cheiro ficaria na minha camisa, que eu nunca mais tomaria Pinot Noir sem pensar em ti e que as minhas noites de domingo nunca mais seriam as mesmas. Nunca mais foram.

quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009

Título

Eu passava dias esperando suas ligações, mas quando o telefone tocava eu não dizia nada. Ficava ouvindo sua respiração, imaginando o que você estaria fazendo naquele exato momento- talvez procurando alguma rua no mapa, esquentando água para o café, procurando alguma meia debaixo da cama. Enquanto eu estava sentada na cama, rabiscando nomes e corações nas orelhas dos livros e com o rosto quente de tanto pressionar o telefone contra ele, com medo de não escutar a sua voz. Talvez eu já soubesse que maior do que a dor da sua ausência física, seria a dor da ausência da sua voz.
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Você reclamava que eu era quieta demais, distraída demais, prolixa demais- desculpe, meu bem, eu te dizia e depois me calava. Mas a verdade era que eu não falava para me concentrar em seu rosto. Por vezes pensei que meus olhos iam sucumbir guardando todos aqueles detalhes. Decorava seus desenhos, seus sinais, formatos, pintinhas. Enquanto você dormia, eu gostava de brincar de ligar as cinco pintinhas que você tem nas costas que foram uma meia-lua. E imaginava que meus dedos eram a outra parte da lua e eu os encaixava, formando a lua cheia. Formando um círculo, sem começo nem fim. Nós dois, sem começo nem fim.
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Você me viu chorar diversas vezes- algumas você me fitava um olhar meio perdido meio furioso, em outras você me embalava em seus braços e dizia: não chora, não chora, deite aqui comigo, está frio, se cobre, não chora. Debaixo das cobertas eu continuava chorando, mas começava a achar que as lágrimas eram apenas uma forma de colocar para fora toda aquela euforia que eu tinha e não podia gritá-la para o mundo. E quando apoiava seu braço sobre minhas costas, eu chorava sorrindo.
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Eu quis tanto que as palavras ditas fossem verdades, que as promessas fossem cumpridas, que as visitas não terminassem. Que eu fosse a sua paz, que você fosse meu porto. Que nós ríssemos mais das suas história, conversássemos mais sobre uma notícia na televisão, fizéssemos mais massagens, andássemos de bicicleta, contássemos causos de família, caminhássemos pela calçada suja, reclamássemos da sujeira, acordássemos mais cedo para ver o nascer do sol, viajássemos outras vezes, comprássemos um cachorro e que passássemos mais madrugadas falando de amor. Do nosso amor. E nos amássemos mais.
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Diversas vezes você me perseguiu em meus sonhos. Três ou quatro pesadelos por noite: eu acordava no meio da madrugada, desorientada, suada e temendo que os pesadelos se transformassem em realidade. Deitava a cabeça no travesseiro e chorava, com medo de dormir e rever as cenas que me deixavam desesperada. Noites a fio foram assim, de insônia, e o travesseiro enxugando minhas lágrimas e guardando meus temores.
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Mas o medo de verdade veio quando vi você acender um cigarro e fungar, olhava para cima sem exclamar uma palavra sequer. Depois você segurou minha mão me disse que eu era tudo, tudo, tudo. Pensei para mim mesma que você também era tudo, tudo, tudo e que minha necessidade de você crescia em progressão geométrica e as alegrias de mim se restringiam a você. Forcei um sorriso para que você parasse de reclamar da minha seriedade.
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E você foi embora sem olhar para trás. Lembro da frieza de seu rosto e suas mãos segurando um pedaço de papel. Você evitava me olhar. Abri a porta. Vi você sair por aquela porta exatamente como entrou: rápido, calado e com meu coração nas mãos.

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2009

Naquela Varanda

- Estou precisando.
- De quê?
- De você.

(silêncio)

- Leu seu horóscopo hoje?
- Li. Câncer. Péssimo dia. E o seu?
- Leão. Péssimo dia pra mim também. Para nós.
- Para eles. Para nós, não.

(silêncio)

- Agora eu preciso de um cigarro.
- Você precisa é de um pulmão novo.
- Você precisa de um amor novo.
- Não. Eu gosto dos antigos.

(silêncio)

- Está esfriando aqui fora.
- Está quente demais lá dentro.
- Gosto dessa brisa. Do fim da tarde.
- ... do azul escurecendo no céu.
- ... dos amores antigos. Gosto.

(silêncio)

- Quando vamos embora?
- Nós temos que ir embora?

(silêncio)

- Acho que perdemos o bonde.
- E a esperança. Voltaremos pálidos para casa.
- E se ficarmos?
- E se ficarmos?

(silêncio)

- Olha pra mim?
- Olho pra você.
- Está me escutando?
- Estou te escutando.
- Eu... digo, nós. Nós temos que fazer alguma coisa.
- O quê?

(silêncio)

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009

Nós que nos amávamos tanto

Desesperador era saber como costumavas me perseguir até quando eu dormia. Durante aqueles quatro dias de angústia que antecederam a tragédia e os próximos quatro que viriam de ausência tua, os pesadelos tornavam-se freqüentes. Nos sonhos lúcidos, enquanto tu te rias das minhas lágrimas eu te olhava desconcertada e beliscava o meu braço direito, pensando pra mim, acorda, acorda, acorda.
Acordei. A chuva entrava pela janela aberta e deixava meu rosto e meu edredom encharcados. Corri ao telefone e quis te ligar, mas a linha estava muda. O suor escorria pela minha nuca; passei as mãos pelo pescoço, peito, braços- senti o sebo sobre a epiderme, a pele oleosa e brilhante. Larguei o telefone e fui tomar um banho. Não sei quanto tempo fiquei mergulhada na água da banheira- mas sei que foi o suficiente para minha pele começar a ressecar. Talvez horas. As imagens tão vívidas dos pesadelos fincavam minha cabeça como agulhas frenéticas prontas para perfurar, causando a tão insuportável dor aguda que começa suave e (não)termina insuportável, me enlouquecendo.
Brinquei com a pouca espuma na superfície da água, formando desenhos que se dissipavam logo. Deitei a cabeça na borda da banheira e tentei dormir, inutilmente. Meu pescoço doía e as minhas costelas pareciam estar quebradas. Levantei-me da banheira e saí do banheiro, sem sequer tirar os resquícios de espuma e água que haviam ficado em meu corpo. Deitei na cama, despida, com a janela ainda aberta- as gotas de chuva que respingavam em mim misturavam-se com as da banheira, me deixando mais molhada ainda. Pensei no resfriado que eu poderia pegar e nos pesadelos que eu estava com medo de sonhar. Não, eu disse pra mim mesma, não adormecerei para não te ver. Até nos sonhos me fazes sofrer. Quando foi que eu me desequilibrei assim? Cheguei a um limite insuportável de ouvir as tuas risadas até durante o meu sono. Quando te tornaste tão cruel? Tenho medo de tuas respostas, medo que digas que fora cruel desde o começo, que sempre mentira, que não valíamos nada. Mas então por que chegamos aqui? Viemos de algum lugar e paramos em lugar nenhum. Perdemo-nos, nós que nos amávamos tanto. Então diga-me: o que faço? O que eu faço com esse nó aqui dentro que insiste em se enrolar mais, mais e mais e a única solução que eu vejo e passar-lhe a tesoura? Esse nó, pasme, esse nó que já foi um gracioso laço se transformou em corda de marinheiro.
Senti o sono chegar ao meu corpo e minhas pálpebras ficarem pesadas. Puxei o edredom e me cobri, não fechei a janela. O sono é maior que o medo, refleti. E antes de fechar os olhos pela última vez naquela noite ouvi um barulho grave e contínuo vindo da rua- me assustei e quase levantei da cama. Mas, por um segundo, pensei ter ouvido tua voz me sussurrar: calma, calma que é só o barulho da chuva contra o telhado.