segunda-feira, 30 de março de 2009

Céu Vanilla

- É melhor assim- eu disse pra mim mesma enquanto arrumava aquela caixa cheia sorrisos e lágrimas.
Fotografias, recadinhos no guardanapo, caixas vazias de chocolate, declarações esboçadas em pautas, flyers de lugares que fomos, um livro dele que li até a metade por medo que acabasse e até um pente que esqueceu dentro da minha bolsa certa vez. Mas o que me chamou mais atenção foi a carteira- estava comigo há mais de duas semanas e ele nunca veio buscar. Dentro só papéis de propaganda, a carteira de identidade e uma foto 3x4 que fiquei tentada em roubar. Fechei a carteira e a aproximei do meu rosto; aquele cheiro de jornal e cocaína que eu também sentia dentro do seu carro. Aquele cheiro que eu nunca mais vou sentir outra vez.
Separei o que era meu- as fotos, os recadinhos no guardanapo, declarações em papéis, caixas de chocolate, os flyers e o livro, porque não, aquele livro eu não devolvo mais, pois ficará fazendo companhia para o pente que resolvi não devolver também. E o que era dele- o chapéu, outras fotos e a carteira, tirei da caixa e deixei em cima da estante porque em breve alguém buscaria e levaria de volta. Fechei a caixa e a coloquei de volta no fundo do armário- de onde nunca mais vai sair.
Peguei um pedaço de papel e escrevi poucas palavras. Coloquei-o dentro da carteira.
No outro dia, ele até fingiu ficar furioso, mas depois de ler a minha caligrafia escondida na carteira, ele sorriu.

'Te vejo em outra vida. Quando nós dois formos gatos'.

terça-feira, 24 de março de 2009

Escondida Dentro do Meu Armário

Foi embora para sempre e eu nem pude buscar minha escova de dentes no seu banheiro. Foi embora para sempre e as minhas roupas ficaram esquecidas no seu armário, meu sapato do lado da cama e os brincos dentro da gaveta. Enquanto eu me pergunto se algum dia voltarei ao seu apartamento para buscar minhas coisas, sofro sabendo que tudo me lembra você. Olho as fotos de outras pessoas nos lugares em que estivemos, sem querer ligo o rádio bem na hora em que toca aquela música que tanto ouvíamos e cantávamos alto no seu carro, ligo a televisão por ligar e está dando aquele filme que vimos nas noites tediosas de domingo, e o desespero, a saudade e o medo vão tomando conta de mim e eu choro- choro essa dor de estar viva e não há remédio algum para isso.
Não quero que volte nunca mais, só quero apagar isso tudo e esquecer o número do seu telefone que eu já sei de cor. Ao mesmo tempo sei que nunca vai sumir, pelo menos não enquanto eu tiver guardado nossas fotos, seus livros, seu chapéu e tudo mais que dividimos dentro daquela caixa que agora está escondida dentro do meu armário.

quinta-feira, 19 de março de 2009

Sapateira

Os livros espalhados pela estante e os sapatos jogados pelo closet mostram quem eu sou, mas não quem eu fui. Pois já me mostrei melhor- no ballet, na natação, na patinação, no piano, no francês. Lembro com orgulho e saudade do tempo em que eu tinha o mundo inteiro sobre a ponta dos meus pés; mas meu mundo foi pro lixo meses atrás, junto com a sapatilha rosa. O meu patins se perdeu e eu não sei andar sobre nada com rodas que não seja um carro, e o francês? O francês je ne souviens pas.
Meu talento todo foi embora com o piano que saiu aqui de casa junto com a minha tia que foi morar na França; talvez se eu arrumar minhas malas e for embora para Paris meus dedos andem sobre as teclas automaticamente, como eles faziam há cinco anos atrás. Aproveito e nado sob o luar no Sena, sei que domino meu corpo muito melhor na água do que em terra firme.
Arrumei aqueles livros que estavam na estante por ordem alfabética. Juntei os onze pares de sapatos que estavam jogados pelo closet e os organizei no canto, junto à parede, já que na sapateira não havia mais espaço. Olhei para todos aqueles saltos altos e logo em seguida para os calos e bolhas dos meus dedos que tocavam o chão gelado.

Eu trocaria os vinte e tantos pares de sapatos que estão na minha sapateira agora por aquela sapatilha rosa de volta.

sexta-feira, 13 de março de 2009

Décimo Segundo Andar

Passei aquela noite ouvindo os discos que você esquecera em meu quarto. Deitei minha cabeça no travesseiro que ainda guardava o seu cheiro, fechei os olhos e senti que o som que saía do vinil era alto o suficiente para estourar os meus tímpanos.
Creio que acabei adormecendo, pois quando percebi o o disco já havia parado de rodar e o silêncio ecoava no quarto. Levantei-me da cama, desviei das muitas garrafas que haviam no chão e andei até à janela: ainda era noite. Viam-se poucas estrelas no céu nublado e o ar abafado entrou no quarto quando abri bruscamente a janela de vidro.
Acendi um cigarro, chutei algumas garrafas pro canto, procurei um cinzeiro, procurei o telefone, procurei o livro que você me emprestou e eu nunca mais te encontrei pra devolver, mas parecia que tudo havia se escondido de mim. Voltei pra janela e fiquei observando a movimentação da rua do décimo segundo andar. Os meus olhos estavam meio inchados, mas eu pude ver com certa clareza lá de cima a calçada da rua: não parecia tão funda assim, a distância do chão e do décimo segundo andar. Alguns metros. Inclinei-me mais na janela e fitei a calçada da rua. Estava mais perto ainda dela. O disco havia parado de rodar havia alguns minutos- ou horas- mas eu juro que escutava as canções tocando ao fundo, as melodias se misturando com o baraulho urbano vindo lá de baixo.
Inclinei todo o meu corpo. A calçada estava cada vez mais perto do décimo segundo andar, como se ela estivesse se movendo para cima, gradativamente. Mais perto. Mais perto. Acho que posso tocá-la.

segunda-feira, 9 de março de 2009

Roxo

Fui trocada, eu sussurrava pra mim mesma, fui trocada! Perguntei-me diversas vezes da onde vinha tanta frieza e crueldade dele para fazer uma escolha dessas, como se eu e ela fôssemos camisas jogadas dentro de um armário e todos os dias ele se revezava: um dia a camisa vermelha, outro dia a camisa branca. Então uma noite ele decide que a camisa vermelha está surrada- mesmo estando nova em folha!- e a joga de qualquer jeito no fundo do armário, perto dos cupins que dissolviam a madeira e das traças que pareciam prontas para rasgar a camisa. Ele, então, segura a camisa branca com o mesmo cuidado que uma mãe segura um filho, e a veste.
Chorei por quatro horas seguidas, liguei para pessoas que sequer lembravam de mim e todas me diziam palavras diferentes mas de mesmo significado- quando se está só, é impossível ser trocado- e depois dormi o resto de madrugada que ainda me restava e parte do dia seguinte agarrada com as palavras que ouvi tantas vezes pelo telefone. Sonhei que, dentro do nosso armário, as camisas brancas iam mudando de tonalidade como se um corante estivesse sendo derramado sobre elas, e iam escurecendo até ficarem roxas. As camisas se multiplicavam e tudo ia ficando cada vez mais roxo, roxo, roxo.
Acordei com o barulho do telefone tocando. Senti um gosto amargo na boca e vi o travesseiro molhado com o suor do meu pescoço. Olhei para o identificador de chamadas: ele me ligava. Lentamente, tirei o telefone do gancho e o encostei em meu rosto:

- Não há camisas brancas nem vermelhas: o seu armário está vazio.

E desliguei.

sábado, 7 de março de 2009

Chave da Gaveta

Encontrei fotos tuas num álbum que eu nem lembrava que existia. Pensei em queimá-las, mas não se joga uma história no lixo, não se deixa um amor virar pó- nada que foi de verdade realmente some. Deixei-as dentro do álbum para que ali ficassem, intocáveis, inatingíveis. Como todas as lembranças que tenho de ti, guardadas bem no fundo, sem ninguém saber, sem ninguém notar.
Quase o álbum inteiro abrigava fotos tuas, fotos nossas. Situações que eu sequer lembrava de terem sido registradas, um passado recente que parecia ser tão distante- várias histórias que se fundiam e se confundiam e se transformavam em uma só: a nossa.
Fechei o álbum e o guardei o álbum na última gaveta. Tranquei com chave. Olhei para o relógio, peguei a minha bolsa e saí pela porta da frente. Antes de atravessar a rua para chegar à estação de trem, joguei a chave da gaveta no primeiro bueiro que enxerguei na calçada.