terça-feira, 1 de setembro de 2009

Metilfenidato, 5:33

As pílulas no horário errado: meu vício. A insônia me traz lembranças que eu jurei estarem apagadas- mas nunca apagam. Deito no chão quente e choro; as lágrimas molham o carpete italiano e eu lembro da minha mãe dizendo "paguei euros por isso!".
Levanto com certa dificuldade, ando até à cozinha e passo um café. Duas, três xícaras. Pego minha câmera, meus livros, meus pincéis de cerdas naturais e caminho até à porta com tanto cuidado que pareço deslizar sobre o carpete- e os euros abaixo dos meus pés vão secando, aos poucos.

sábado, 11 de julho de 2009

Confesso

Que às vezes acordo de madrugada e procuro o teu corpo na minha cama de solteiro e assim decepcionada, triste, melancólica, volto a dormir. Que nessas noites frias de julho sinto a tua falta como nunca, então escuto o vinil rodar enquanto bebo uma taça de vinho, sozinha.

Que ouvir teu nome me causa uma sensação de choque, que fujo de ti para não te enfrentar, que, no fundo, teu lugar ainda está vazio. Que ainda consegues mexer dentro, dentro de mim.

Que eu te procuro em outros corpos.
(Juro que um dia eu te encontro).

sexta-feira, 26 de junho de 2009

Ao Lado de uma Bromélia

Acordo mais cedo para ver o sol nascer pela minha janela. Saio para o jardim, estremeço com a rigidez do inverno e corro entre as árvores, as plantas, piso nas folhas secas e na terra adormecida. Da rua vejo a minha casa e janela que deixei aberta. Olho para o céu acinzentado e agradeço- talvez a Deus, a Alá, Iamanjá, Buda ou seja lá quem tenha me regido todas essas manhãs que me manti viva- enfim, agradeço pelo meu quarto dentro do castelo ter a visão direta para o pôr-do-sol, pelo meu cachecol bordado à mão e por esse jardim que me recebe de uma forma tão acolhedora que às vezes acho que há raízes nascendo nos meus pés e talvez eu me plante ali, ao lado de uma bromélia, e assim fique. Sempre.

segunda-feira, 22 de junho de 2009

Costumo dizer que eu era um banco de praça recém pintado de branco. Ao meu lado havia uma placa escrito: "tinta fresca". Se tocares com força em mim, a tinta mancha. Tua mão fica branca e o banco fica marcado com tua mão. Então não me toca. Há tantos outros bancos, procura conforto em outros. Tenho certeza que vais encontrar.
Eu te imploro, não me procura, pois não leio mais as tuas palavras, não atendo mais os teus telefonemas e não te cumprimento quando te vejo na rua. Não me diga que mudarás por minha causa porque eu não acredito mais. Não me diga que precisas de mim, pois sei que tu precisa mesmo é de uma mulher-enfermeira, uma mãe. Não me peça para voltar ao teu apartamento, não me peça para cozinhar para ti, não me peça para vestir as roupas que tanto gostas. Apenas me deixa seguir outros caminhos, segurando na mão de outros que me passarão muito mais segurança do que sempre me passaste. Deixa-me ir.

domingo, 31 de maio de 2009

Cama, Sarjeta

Cheguei ao fundo do poço: ao fundo do álcool, ao fundo dos cigarros baratos, ao fundo da cocaína, ao fundo da sarjeta- que eu chamo formalmente de cama. Minha cama, minha sarjeta. Bebo no gargalo e por falta de um meio fio a céu aberto, me jogo no colchão de molas de novecentos reais e finjo que é um pedaço de concreto pintado de branco. Perco a linha, literalmente- o álcool acaba com a minha memória recente. Acendo um cigarro Vogue azul e descubro que o sabor menta é uma porcaria, mas continuo a fumar. Levanto da minha sarjeta, chuto algumas garrafas pra longe, procuro o Abbey Road em vinil que eu te roubei em todas as prateleiras, estantes, gavetas, armários. Acho graça quando eu o encontro debaixo das minhas calças jeans e o coloco para tocar no último volume e canto bem alto de propósito para o vizinho do lado tocar minha campanhia e dizer: "Vou chamar a polícia!" e então eu vou dizer: "Chame, chame a polícia, chame o teu advogado, chame o presidente, chame o Papa, chame até Jesus, quero mostrar para ele que posso contrariá-lo: transformo sangue em vinho. É fácil, eu te ensino: encontre uma pessoa, se apaixone loucamente, jantem juntos numa noite fria de junho, bebam umas três garrafas de Pinot Noir, fiquem bêbados, transem, namorem, se apaixone mais loucamente ainda e pronto! De repente você não tem mais sangue, só Pinot Noir correndo nas tuas veias. Ou Pinot Gris. Ou Pinot Meunier... pode escolher."
Mas a campainha não é tocada. A música pára. A agulha está em pé. Eu, meio tonta meio eufórica, coloco o disco para tocar outra vez, acendo outro cigarro mentolado, bebo o vinho no gargalo e me jogo, outra vez, na sarjeta: tudo de novo.

sexta-feira, 8 de maio de 2009

Te desejo quê.

Só te desejo que continue em pé e mostre essa sensibilidade que sempre escondeu, que consiga aquilo me tanto me pediu, que não destrua o que construímos juntos, mas modifique- para melhor, pra você, pra mim. Que encontre novos caminhos e que dessa vez as estradas estejam cheias de boas novidades, que te levem para algum lugar que te faça bem e que o clima sempre esteja ao teu favor, pode até chover de vez em quando mas em poucas horas o sol volte a brilhar. Que quando desdobrar o mapa olhe para o sul e lembre de mim. E dê um sorriso quando lembrar das manhãs de sábado, tardes de terça-feira, noites de domingo. Que encontre alguém que acorde tarde como você e que tomem um semi café da manhã assim como nós tomávamos e depois voltem pra cama reclamando que não há nada decente na televisão assim como nós reclamávamos. Que desista um pouco da loucura, que durma mais cedo, que jogue as garrafas fora, que ligue para as pessoas que ama somente para dizer um olá. Que faça projetos, que coloque tudo no papel e depois na prática, que tenha mais certeza da vida mas que não esqueça que as incertezas também nos ensinam. Que aprenda a demonstrar tudo o que há dentro, porque há um dentro e dentro desse dentro há uma mistura de sentimentos, coisas. Que ame demais e sofra de menos, que lembre do que você tem que fazer e nunca esqueça do que você já fez. Que um dia nos encontremos no supermercado, na sessão de doces, e que você sorrie pra mim e eu pra você, que nos cumprimentemos e nos abracemos. Que eu te veja são e completo, que me veja feliz e saudável, que nos lembremos só das horas no telefone, das risadas altas, das jantas. E sorriremos, sim, sorriremos e diremos 'tchau' e iremos para caminhos diferentes que nunca mais se cruzarão- sabe, seremos felizes, assim, longe.

(texto escrito em 2008. Nem lembrava dele. Da época em que eu era bondosa o suficiente para desejar alegrias a quem ajudou a destruir parte da minha vida. Ah, doce ingenuidade.)

sábado, 25 de abril de 2009

Desculpa-me, meu bem

Desculpa-me, meu bem. Sim, eu sei, tu que erraste- tu traíste, tu mentiste, tu pegaste o ferro em brasa e me queimaste. Tu deverias estar lambendo o chão que eu piso, implorando pelo meu "tudo bem", pedindo pelo amor que sempre te dei de graça- um amor vía única.
Mas te peço perdão. Eu te troquei. Desculpa, amor. Colocaram-me contra à parede e eu não pude te escolher. Com uma frieza tão atípica de mim escolhi o conforto ao teu amor(que nunca foi amor, convenhamos, pena, talvez?), escolhi as viagens, as roupas, os sapatos, os cartões de crédito. Eu fui obrigada a fazê-lo, meu amor. Não tinha mais forças para lutar contra toda a futilidade que me cercava e me impedia de te ter ao meu lado, não pude contrariar os meus princípios, não pude mais fugir do meu verdadeiro lugar no mundo. Cansei de buscas por um amor insaciável que nunca me deste. Voltei ao meu lar, debaixo das asas de quem quer meu bem, vivendo o meu mundo-perfeito que tanto criticaste, sendo feliz do jeito que sempre julgaste. Então desculpa. O teu amor se afogou na primeira tempestade, mas meu par de Christian Louboutin aguenta meu peso todos os dias, e ainda vai aguentar por muito tempo.

domingo, 19 de abril de 2009

Mais Ameno

Chamo toda aquela parte de 'período das trevas'- aquela época em que consumi pessoas assim como consumia cigarros: compulsivamente e sem dó, em que eu confundi ética com etílico, em que garrafas vazias criavam raízes no chão da minha casa, em que liguei tantas vezes e segurava o telefone contra o ouvido por tantas horas, em que dormia durante dias, em que deitava sozinha na tua cama e não sabia por quais ruas tu andavas, em que chorei desesperada no ombro dos amigos, dos professores, das pessoas na rua, do homem que encontrei no elevador, da telefonista do telemarketing, do motorista de táxi, em que passei dias tendo a certeza de que a cada minuto que passava minha necessidade de ti crescia em progressão geométrica e só me desesperava mais e mais, em que busquei seu cheiro em outros espectros em vão, tentei abafar esse grito de todas as maneiras, com psiquiatra, cartomante, horóscopo, cocaína, álcool em dobro, cadernos em branco, fio da navalha rasgando a pele, oito litros de água por dia e tudo mais que um ser humano pode fazer para no final poder dizer: engraçado, o dia está mais bonito hoje. Mais ameno.

sexta-feira, 17 de abril de 2009

Vital

Atendi muitos telefonemas dizendo "alô" e ouvindo um "vai passar, eu te juro que vai passar" em resposta. Eu não sabia se sorria se chorava se contava longas divagações ou se apenas dizia um simplório "obrigada". Quis abraçar tanta gente pelo telefone, assim, apenas com a voz, com a mão firme no gancho e com as orelhas quentes de tanto som.
Hoje quem liga sou eu- conto dos meus dias, tão calmos, tão em paz. Sento no grama e leio os clássicos, o vento deixa meu cabelo mais desarrumado do que ele já é, sento na escrivaninha e faço meus cálculos de estequiometria, levo meu cachorro pra tomar um sol, pinto minhas unhas, deito na cama e deixo o som do rádio baixinho. Abro a janela às seis e meia da manhã e ainda consigo ver o sol nascer, gosto da brisa fria do outono, coloco um casaco, vou pra rua, cumprimento vizinhos que eu sequer sei o nome, sorrio para o jardineiro que me entrega um lírio e sempre me diz: "tão branquinha, com esses olhos verdes, o rosto corado... parece uma bonequinha!", dou uma risada e lembro do meu avô e dos vinis dele que eu peguei sem a minha vó perceber depois que ele nos deixou.
Volto pra casa, tiro o pó dos vinis, dos livros antigos, das fotos bonitas, dos móveis. Vejo o sol das duas da tarde e penso em toda essa energia vital que ignoramos todos os dias mas que nos deixa vivos- esse pouco de sol, essa luz que está fraca mas que ainda não apagou. Nunca apaga.

segunda-feira, 13 de abril de 2009

Últimas Palavras

- Quando eu disse que tinha ódio, não estava falando de você.
- Não?
- Não. Não tenho ódio de você.
- Não?
- Não. Por que teria?
- Diga-me você.

(silêncio)

- Somos tão engraçados, nós dois.
- Diferentes demais.
- Semelhantes demais, eu diria.
- Tão semelhantes que chegamos a ser diferentes.

(silêncio)

- Desculpe.
- Você sabe que não precisa.
- Não, eu...
- Você foi ótima, a culpa não é sua.
- Então obrigada.
- Pelo quê?
- Pelas músicas. Pela noite.
- Qualquer um canta uma música. Qualquer um te faz companhia numa noite, não?
- Não.
- Bom saber.

(silêncio)

- Eu acho que é isso.
- Podemos ir embora?
- Podemos.
- Algo mais a acresentar?
- Te vejo em outra vida, quando nós dois formos gatos.
- Te procuro em outros corpos, juro que um dia te encontro.

(silêncio)

- Não me espere pra jantar, eu não volto.
- Eu sei. Nunca mais, não é?
- Talvez em outra vida.
- Talvez em outra vida.

(silêncio ad eternum)

segunda-feira, 6 de abril de 2009

Novo

Remexi nas lembranças, nas fotografias, na infância, nos livros, nas cartas que recebi, nas cartas que escrevi e não enviei e em tudo o que eu considerava passado. Coloquei algumas coisas no lixo e outras continuaram intactas. Levei os livros velhos para a biblioteca e coloquei os novos- que ainda estavam dentro da sacola- na estante.
Tirei inutilidades das gavetas, roupas velhas do armário, os sapatos que não uso mais distribui entre as amigas. Colei pelas paredes da casa cartazes que não me fazem esquecer compromissos e matérias importantes, troquei a foto do porta-retrato, levei a escova de dente de volta para o banheiro, separei os discos e filmes por ordem alfabética e ainda sobraram duas escrivaninhas para os meus estudos.

Estranho. Começou tudo de novo. Mas dessa vez tão mais... leve. Limpo.

segunda-feira, 30 de março de 2009

Céu Vanilla

- É melhor assim- eu disse pra mim mesma enquanto arrumava aquela caixa cheia sorrisos e lágrimas.
Fotografias, recadinhos no guardanapo, caixas vazias de chocolate, declarações esboçadas em pautas, flyers de lugares que fomos, um livro dele que li até a metade por medo que acabasse e até um pente que esqueceu dentro da minha bolsa certa vez. Mas o que me chamou mais atenção foi a carteira- estava comigo há mais de duas semanas e ele nunca veio buscar. Dentro só papéis de propaganda, a carteira de identidade e uma foto 3x4 que fiquei tentada em roubar. Fechei a carteira e a aproximei do meu rosto; aquele cheiro de jornal e cocaína que eu também sentia dentro do seu carro. Aquele cheiro que eu nunca mais vou sentir outra vez.
Separei o que era meu- as fotos, os recadinhos no guardanapo, declarações em papéis, caixas de chocolate, os flyers e o livro, porque não, aquele livro eu não devolvo mais, pois ficará fazendo companhia para o pente que resolvi não devolver também. E o que era dele- o chapéu, outras fotos e a carteira, tirei da caixa e deixei em cima da estante porque em breve alguém buscaria e levaria de volta. Fechei a caixa e a coloquei de volta no fundo do armário- de onde nunca mais vai sair.
Peguei um pedaço de papel e escrevi poucas palavras. Coloquei-o dentro da carteira.
No outro dia, ele até fingiu ficar furioso, mas depois de ler a minha caligrafia escondida na carteira, ele sorriu.

'Te vejo em outra vida. Quando nós dois formos gatos'.

terça-feira, 24 de março de 2009

Escondida Dentro do Meu Armário

Foi embora para sempre e eu nem pude buscar minha escova de dentes no seu banheiro. Foi embora para sempre e as minhas roupas ficaram esquecidas no seu armário, meu sapato do lado da cama e os brincos dentro da gaveta. Enquanto eu me pergunto se algum dia voltarei ao seu apartamento para buscar minhas coisas, sofro sabendo que tudo me lembra você. Olho as fotos de outras pessoas nos lugares em que estivemos, sem querer ligo o rádio bem na hora em que toca aquela música que tanto ouvíamos e cantávamos alto no seu carro, ligo a televisão por ligar e está dando aquele filme que vimos nas noites tediosas de domingo, e o desespero, a saudade e o medo vão tomando conta de mim e eu choro- choro essa dor de estar viva e não há remédio algum para isso.
Não quero que volte nunca mais, só quero apagar isso tudo e esquecer o número do seu telefone que eu já sei de cor. Ao mesmo tempo sei que nunca vai sumir, pelo menos não enquanto eu tiver guardado nossas fotos, seus livros, seu chapéu e tudo mais que dividimos dentro daquela caixa que agora está escondida dentro do meu armário.

quinta-feira, 19 de março de 2009

Sapateira

Os livros espalhados pela estante e os sapatos jogados pelo closet mostram quem eu sou, mas não quem eu fui. Pois já me mostrei melhor- no ballet, na natação, na patinação, no piano, no francês. Lembro com orgulho e saudade do tempo em que eu tinha o mundo inteiro sobre a ponta dos meus pés; mas meu mundo foi pro lixo meses atrás, junto com a sapatilha rosa. O meu patins se perdeu e eu não sei andar sobre nada com rodas que não seja um carro, e o francês? O francês je ne souviens pas.
Meu talento todo foi embora com o piano que saiu aqui de casa junto com a minha tia que foi morar na França; talvez se eu arrumar minhas malas e for embora para Paris meus dedos andem sobre as teclas automaticamente, como eles faziam há cinco anos atrás. Aproveito e nado sob o luar no Sena, sei que domino meu corpo muito melhor na água do que em terra firme.
Arrumei aqueles livros que estavam na estante por ordem alfabética. Juntei os onze pares de sapatos que estavam jogados pelo closet e os organizei no canto, junto à parede, já que na sapateira não havia mais espaço. Olhei para todos aqueles saltos altos e logo em seguida para os calos e bolhas dos meus dedos que tocavam o chão gelado.

Eu trocaria os vinte e tantos pares de sapatos que estão na minha sapateira agora por aquela sapatilha rosa de volta.

sexta-feira, 13 de março de 2009

Décimo Segundo Andar

Passei aquela noite ouvindo os discos que você esquecera em meu quarto. Deitei minha cabeça no travesseiro que ainda guardava o seu cheiro, fechei os olhos e senti que o som que saía do vinil era alto o suficiente para estourar os meus tímpanos.
Creio que acabei adormecendo, pois quando percebi o o disco já havia parado de rodar e o silêncio ecoava no quarto. Levantei-me da cama, desviei das muitas garrafas que haviam no chão e andei até à janela: ainda era noite. Viam-se poucas estrelas no céu nublado e o ar abafado entrou no quarto quando abri bruscamente a janela de vidro.
Acendi um cigarro, chutei algumas garrafas pro canto, procurei um cinzeiro, procurei o telefone, procurei o livro que você me emprestou e eu nunca mais te encontrei pra devolver, mas parecia que tudo havia se escondido de mim. Voltei pra janela e fiquei observando a movimentação da rua do décimo segundo andar. Os meus olhos estavam meio inchados, mas eu pude ver com certa clareza lá de cima a calçada da rua: não parecia tão funda assim, a distância do chão e do décimo segundo andar. Alguns metros. Inclinei-me mais na janela e fitei a calçada da rua. Estava mais perto ainda dela. O disco havia parado de rodar havia alguns minutos- ou horas- mas eu juro que escutava as canções tocando ao fundo, as melodias se misturando com o baraulho urbano vindo lá de baixo.
Inclinei todo o meu corpo. A calçada estava cada vez mais perto do décimo segundo andar, como se ela estivesse se movendo para cima, gradativamente. Mais perto. Mais perto. Acho que posso tocá-la.

segunda-feira, 9 de março de 2009

Roxo

Fui trocada, eu sussurrava pra mim mesma, fui trocada! Perguntei-me diversas vezes da onde vinha tanta frieza e crueldade dele para fazer uma escolha dessas, como se eu e ela fôssemos camisas jogadas dentro de um armário e todos os dias ele se revezava: um dia a camisa vermelha, outro dia a camisa branca. Então uma noite ele decide que a camisa vermelha está surrada- mesmo estando nova em folha!- e a joga de qualquer jeito no fundo do armário, perto dos cupins que dissolviam a madeira e das traças que pareciam prontas para rasgar a camisa. Ele, então, segura a camisa branca com o mesmo cuidado que uma mãe segura um filho, e a veste.
Chorei por quatro horas seguidas, liguei para pessoas que sequer lembravam de mim e todas me diziam palavras diferentes mas de mesmo significado- quando se está só, é impossível ser trocado- e depois dormi o resto de madrugada que ainda me restava e parte do dia seguinte agarrada com as palavras que ouvi tantas vezes pelo telefone. Sonhei que, dentro do nosso armário, as camisas brancas iam mudando de tonalidade como se um corante estivesse sendo derramado sobre elas, e iam escurecendo até ficarem roxas. As camisas se multiplicavam e tudo ia ficando cada vez mais roxo, roxo, roxo.
Acordei com o barulho do telefone tocando. Senti um gosto amargo na boca e vi o travesseiro molhado com o suor do meu pescoço. Olhei para o identificador de chamadas: ele me ligava. Lentamente, tirei o telefone do gancho e o encostei em meu rosto:

- Não há camisas brancas nem vermelhas: o seu armário está vazio.

E desliguei.

sábado, 7 de março de 2009

Chave da Gaveta

Encontrei fotos tuas num álbum que eu nem lembrava que existia. Pensei em queimá-las, mas não se joga uma história no lixo, não se deixa um amor virar pó- nada que foi de verdade realmente some. Deixei-as dentro do álbum para que ali ficassem, intocáveis, inatingíveis. Como todas as lembranças que tenho de ti, guardadas bem no fundo, sem ninguém saber, sem ninguém notar.
Quase o álbum inteiro abrigava fotos tuas, fotos nossas. Situações que eu sequer lembrava de terem sido registradas, um passado recente que parecia ser tão distante- várias histórias que se fundiam e se confundiam e se transformavam em uma só: a nossa.
Fechei o álbum e o guardei o álbum na última gaveta. Tranquei com chave. Olhei para o relógio, peguei a minha bolsa e saí pela porta da frente. Antes de atravessar a rua para chegar à estação de trem, joguei a chave da gaveta no primeiro bueiro que enxerguei na calçada.

quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009

Noite de Domingo

O vinho que descia queimando minha garganta, os pratos sujos em cima do baú e o edredom macio que nos cobria- os três já denunciavam que a partir daquele dia eu fugiria de casa diversas vezes, que o teu cheiro ficaria na minha camisa, que eu nunca mais tomaria Pinot Noir sem pensar em ti e que as minhas noites de domingo nunca mais seriam as mesmas. Nunca mais foram.

quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009

Título

Eu passava dias esperando suas ligações, mas quando o telefone tocava eu não dizia nada. Ficava ouvindo sua respiração, imaginando o que você estaria fazendo naquele exato momento- talvez procurando alguma rua no mapa, esquentando água para o café, procurando alguma meia debaixo da cama. Enquanto eu estava sentada na cama, rabiscando nomes e corações nas orelhas dos livros e com o rosto quente de tanto pressionar o telefone contra ele, com medo de não escutar a sua voz. Talvez eu já soubesse que maior do que a dor da sua ausência física, seria a dor da ausência da sua voz.
-
Você reclamava que eu era quieta demais, distraída demais, prolixa demais- desculpe, meu bem, eu te dizia e depois me calava. Mas a verdade era que eu não falava para me concentrar em seu rosto. Por vezes pensei que meus olhos iam sucumbir guardando todos aqueles detalhes. Decorava seus desenhos, seus sinais, formatos, pintinhas. Enquanto você dormia, eu gostava de brincar de ligar as cinco pintinhas que você tem nas costas que foram uma meia-lua. E imaginava que meus dedos eram a outra parte da lua e eu os encaixava, formando a lua cheia. Formando um círculo, sem começo nem fim. Nós dois, sem começo nem fim.
-
Você me viu chorar diversas vezes- algumas você me fitava um olhar meio perdido meio furioso, em outras você me embalava em seus braços e dizia: não chora, não chora, deite aqui comigo, está frio, se cobre, não chora. Debaixo das cobertas eu continuava chorando, mas começava a achar que as lágrimas eram apenas uma forma de colocar para fora toda aquela euforia que eu tinha e não podia gritá-la para o mundo. E quando apoiava seu braço sobre minhas costas, eu chorava sorrindo.
-
Eu quis tanto que as palavras ditas fossem verdades, que as promessas fossem cumpridas, que as visitas não terminassem. Que eu fosse a sua paz, que você fosse meu porto. Que nós ríssemos mais das suas história, conversássemos mais sobre uma notícia na televisão, fizéssemos mais massagens, andássemos de bicicleta, contássemos causos de família, caminhássemos pela calçada suja, reclamássemos da sujeira, acordássemos mais cedo para ver o nascer do sol, viajássemos outras vezes, comprássemos um cachorro e que passássemos mais madrugadas falando de amor. Do nosso amor. E nos amássemos mais.
-
Diversas vezes você me perseguiu em meus sonhos. Três ou quatro pesadelos por noite: eu acordava no meio da madrugada, desorientada, suada e temendo que os pesadelos se transformassem em realidade. Deitava a cabeça no travesseiro e chorava, com medo de dormir e rever as cenas que me deixavam desesperada. Noites a fio foram assim, de insônia, e o travesseiro enxugando minhas lágrimas e guardando meus temores.
-
Mas o medo de verdade veio quando vi você acender um cigarro e fungar, olhava para cima sem exclamar uma palavra sequer. Depois você segurou minha mão me disse que eu era tudo, tudo, tudo. Pensei para mim mesma que você também era tudo, tudo, tudo e que minha necessidade de você crescia em progressão geométrica e as alegrias de mim se restringiam a você. Forcei um sorriso para que você parasse de reclamar da minha seriedade.
-
E você foi embora sem olhar para trás. Lembro da frieza de seu rosto e suas mãos segurando um pedaço de papel. Você evitava me olhar. Abri a porta. Vi você sair por aquela porta exatamente como entrou: rápido, calado e com meu coração nas mãos.

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2009

Naquela Varanda

- Estou precisando.
- De quê?
- De você.

(silêncio)

- Leu seu horóscopo hoje?
- Li. Câncer. Péssimo dia. E o seu?
- Leão. Péssimo dia pra mim também. Para nós.
- Para eles. Para nós, não.

(silêncio)

- Agora eu preciso de um cigarro.
- Você precisa é de um pulmão novo.
- Você precisa de um amor novo.
- Não. Eu gosto dos antigos.

(silêncio)

- Está esfriando aqui fora.
- Está quente demais lá dentro.
- Gosto dessa brisa. Do fim da tarde.
- ... do azul escurecendo no céu.
- ... dos amores antigos. Gosto.

(silêncio)

- Quando vamos embora?
- Nós temos que ir embora?

(silêncio)

- Acho que perdemos o bonde.
- E a esperança. Voltaremos pálidos para casa.
- E se ficarmos?
- E se ficarmos?

(silêncio)

- Olha pra mim?
- Olho pra você.
- Está me escutando?
- Estou te escutando.
- Eu... digo, nós. Nós temos que fazer alguma coisa.
- O quê?

(silêncio)

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009

Nós que nos amávamos tanto

Desesperador era saber como costumavas me perseguir até quando eu dormia. Durante aqueles quatro dias de angústia que antecederam a tragédia e os próximos quatro que viriam de ausência tua, os pesadelos tornavam-se freqüentes. Nos sonhos lúcidos, enquanto tu te rias das minhas lágrimas eu te olhava desconcertada e beliscava o meu braço direito, pensando pra mim, acorda, acorda, acorda.
Acordei. A chuva entrava pela janela aberta e deixava meu rosto e meu edredom encharcados. Corri ao telefone e quis te ligar, mas a linha estava muda. O suor escorria pela minha nuca; passei as mãos pelo pescoço, peito, braços- senti o sebo sobre a epiderme, a pele oleosa e brilhante. Larguei o telefone e fui tomar um banho. Não sei quanto tempo fiquei mergulhada na água da banheira- mas sei que foi o suficiente para minha pele começar a ressecar. Talvez horas. As imagens tão vívidas dos pesadelos fincavam minha cabeça como agulhas frenéticas prontas para perfurar, causando a tão insuportável dor aguda que começa suave e (não)termina insuportável, me enlouquecendo.
Brinquei com a pouca espuma na superfície da água, formando desenhos que se dissipavam logo. Deitei a cabeça na borda da banheira e tentei dormir, inutilmente. Meu pescoço doía e as minhas costelas pareciam estar quebradas. Levantei-me da banheira e saí do banheiro, sem sequer tirar os resquícios de espuma e água que haviam ficado em meu corpo. Deitei na cama, despida, com a janela ainda aberta- as gotas de chuva que respingavam em mim misturavam-se com as da banheira, me deixando mais molhada ainda. Pensei no resfriado que eu poderia pegar e nos pesadelos que eu estava com medo de sonhar. Não, eu disse pra mim mesma, não adormecerei para não te ver. Até nos sonhos me fazes sofrer. Quando foi que eu me desequilibrei assim? Cheguei a um limite insuportável de ouvir as tuas risadas até durante o meu sono. Quando te tornaste tão cruel? Tenho medo de tuas respostas, medo que digas que fora cruel desde o começo, que sempre mentira, que não valíamos nada. Mas então por que chegamos aqui? Viemos de algum lugar e paramos em lugar nenhum. Perdemo-nos, nós que nos amávamos tanto. Então diga-me: o que faço? O que eu faço com esse nó aqui dentro que insiste em se enrolar mais, mais e mais e a única solução que eu vejo e passar-lhe a tesoura? Esse nó, pasme, esse nó que já foi um gracioso laço se transformou em corda de marinheiro.
Senti o sono chegar ao meu corpo e minhas pálpebras ficarem pesadas. Puxei o edredom e me cobri, não fechei a janela. O sono é maior que o medo, refleti. E antes de fechar os olhos pela última vez naquela noite ouvi um barulho grave e contínuo vindo da rua- me assustei e quase levantei da cama. Mas, por um segundo, pensei ter ouvido tua voz me sussurrar: calma, calma que é só o barulho da chuva contra o telhado.

quarta-feira, 14 de janeiro de 2009

Começo de um Outono Incabado

Foi numas dessas noites geladas de outono em que as árvores despidas balançam ao ritmo do vento e as folhas amareladas cobrem as calçadas que eu descobri: ele não voltaria.